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Chimamanda Ngozi Adichie examina complexidade das relações humanas

Escritora nigeriana vem ao Brasil lançar o novo livro, "A contagem dos sonhos", atravessado por fatos marcantes dos últimos dez anos

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Edma de Góis
Especial para o EM

“As histórias morrem ou se apagam da memória coletiva simplesmente por não serem contadas. Ou uma única versão prospera porque outras versões são silenciadas”, declara a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em nota que acompanha seu aguardado romance “A contagem dos sonhos”. Na nova obra, narrativas de quatro mulheres, interligadas pelo poder da solidariedade feminina, capturam seus desejos e dramas coletivos que mobilizam o planeta, como a questão das imigrações.

Mas não para por aí. “A contagem dos sonhos”, ambientado no contexto dos lockdowns da pandemia de covid, consegue apreender um conjunto de temas urgentes para a sociedade sem obviedades, talvez porque um dos recados do livro seja exatamente a respeito da complexidade das experiências humanas destroçadas pelo atual estágio do capitalismo.


A primeira narradora Chiamaka, herdeira nigeriana às voltas com sucessivos parceiros amorosos e o desejo de escrever literatura de viagens, divide a cena com sua melhor amiga, Zikora, uma talentosa advogada em D.C. que vê seu conceito de família cair por terra diante de uma gravidez inesperada e o abandono do namorado.

Conhecemos ainda Omelogor, uma de suas primas, ex-executiva que resolve estudar pornografia em um curso de pós-graduação e tem uma página na internet, “Só para homens”, em que ironiza as masculinidades, e sua ex-funcionária Kadiatou, a única guineense, camareira em um hotel de luxo e que tem a vida virada ao avesso quando se vê encurralada no ambiente de trabalho por um hóspede, face a face com o terror de toda mulher.

Ganha revelo o fato de Chiamaka e Omelogor serem narradoras em primeira pessoa, enquanto Zikora e Kadiatou, mulheres que atravessam dois impensáveis traumas, têm duas histórias contadas, o que permite uma distância de segurança diante do que é narrado, a criação de um plano de observação, ao o que também pode ser interpretado como um gesto de cuidado da autora ao tratar de dois assuntos extremamente delicados, maternidade e violência sexual.


O caleidoscópio de pautas tratadas no romance engloba parto e perda gestacional, abortos e histerectomias, miomas e mutilação genital feminina, agressão sexual e assédio sexual, o que torna praticamente impossível que leitoras de todo o mundo não se identifiquem e que leitores não se calem diante de tantos episódios da vida ordinária inafiançáveis.

Construídas com diálogos rápidos e precisos, as quatro protagonistas estão no front, sem terem suas vulnerabilidades ocultadas, o que garante doses extras de humanização às personagens. Assim “A contagem dos sonhos”, digamos, amplia as possibilidades ficcionais dos livros anteriores (“Hibisco roxo”, de 2003, “Meio Sol Amarelo”, de 2006, e “Americanah”, de 2013) ao incorporar com ainda mais êxito o espírito dos últimos dez anos, quando as denúncias pós Me Too encorajaram mulheres a denunciarem seus abusadores muito além dos muros de Hollywood ou os aplicativos de relacionamentos se tornaram os principais pontos de encontros heterossexuais sem garantia de relações saudáveis e não raro esconderijos de masculinidades tóxicas.

A narrativa mais dura de todo o livro, a da camareira Kadiatou, desloca a leitura até 2011 ao recuperar um caso real que chocou o mundo. A agressão vivida pela personagem se inspira no episódio envolvendo o ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn e a nigeriana que o acusou Nafissatou Diallo em um hotel de luxo em Nova York. O processo criminal foi arquivado após a vítima itir ter inventado a história de um estupro coletivo anterior.

Ao misturar os casos e recuar, o Estado impôs outra violência contra Diallo, duvidando da agressão, comportamento reiterado por homens públicos e jogadores de futebol, inclusive brasileiros, até hoje. Mas é exatamente da falta de limites que se ocupa Chimamanda ao trazer a realidade para a ficção. “O impulso criativo pode ser despertado pela vontade de corrigir um erro, não importa se de maneira oblíqua. Neste caso, corrigir um erro por meio do ato de escrevê-lo, no equilíbrio das histórias”, explica a autora na nota ao final do romance.


Os lutos vividos pela escritora nos últimos anos também atravessam o romance. “A cobertura da minha vida foi arrancada”, diz Chimamanda ao lembrar a morte do pai em junho de 2020 e a da mãe, a quem a obra é dedicada, em março de 2021. Assim, o livro sobre diferentes experiências de mulheres e a imigração da Nigéria aos Estados Unidos acaba por conectar zonas de vida da própria autora, como se Chimamanda ao fim fosse a quinta narradora de uma história sobre mulheres na contemporaneidade, interseccionada por raça e classe social. Se “Americanah” (2013), vencedor do National Book Critics Circle Award, concedeu a Chimamanda assento entre as principais vozes da literatura contemporânea mundial, “A contagem dos sonhos” confirma sua firmeza como autora, sem presteza, sem ceder às pressões do mercado editorial, lançando no seu tempo uma obra completa, ainda que sem pretensões de ser definitiva, sobre um mundo que a todo instante nos desencoraja a audácia de sonhar.


Trecho

“Ela contou a Chia o que tinha acontecido, assim como havia contado para o detetive, a enfermeira, o gerente, o investigador; mas, quando contou a Chica, permitiu-se reviver aquilo segundo por segundo, o homem branco nu correndo em sua direção, sua força. Ele a forçou de maneira despreocupada, tão despreocupada, como se estivesse manuseando uma coisa inanimada e impossível de quebrar. Um objeto. Ele já havia feito aquilo muitas vezes, Kadiatou tinha certeza, por causa daquela agressão tão casual, tão natural e impensada. Não houve hesitação em meio à sua indiferença, nenhuma pontada de consciência. Mas Kadiatou não era uma coisa. Era uma mulher e podia quebrar. Ele era um homem poderoso, podia ter todas as mulheres que quisesse, mas ainda assim fez aquilo com ela. Sua vida antiga tinha acabado, a vida cuidadosa que havia construído para si e Binta, o futuro com Amadou; suas certezas, todas haviam se esvaído.”

EDMA DE GÓIS é jornalista, doutora em Literatura (UnB) e pós-doutora em Literatura e Cultura e em Estudo de Linguagens.

Chimamanda no Brasil

Chimamanda Ngozi Adichie chega ao Brasil na próxima semana para três lançamentos de “A contagem de sonhos”. No próximo dia 13, às 19h, ela participa da abertura da Bienal do Livro Rio 2025, no Riocentro, em conversa com a atriz Taís Araújo, seguida por uma sessão de autógrafos.

No dia seguinte, ainda no Rio, das 10h às 11h30, a escritora nigeriana estará no Festival Led-Luz na Educação, no Museu do Amanhã. Na segunda-feira, dia 16, ela encerra, em São Paulo, a programação brasileira com participação no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, às 20h, no Mackenzie.

Reprodução


“A contagem dos sonhos”
• De Chimamanda Ngozi Adichie
• Tradução de Julia Romeu
• Companhia das Letras
• 422 páginas
• R$ 89

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