ALTA ROTATIVIDADE

Mão de obra é questão urgente quando o assunto é gastronomia

Ambientes quentes, exaustivos e longa jornada, como ocorre em bares e restaurantes, afugentam profissionais. Empresários também têm dificuldade em reter pessoal

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Mais do que almejar a carreira de um cozinheiro ou chef e ser um mestre no assunto, estudar gastronomia é saber sobre culturas diferentes, ter contato com técnicas variadas para manusear alimentos, e adquirir conhecimento acerca de gestão, segurança alimentar, valor nutricional, legislação e processos industriais, entre tantas outras especialidades e especificidades da área.

A princípio, ingressar no ramo, seja qual for o interesse, pode ser tentador e estimulante, mas a verdade é que nem tudo são flores. Independentemente do tempo de mercado, empresários do setor se deparam com a dificuldade em encontrar mão de obra qualificada, enquanto profissionais, por mais capacitados que sejam, têm uma série de aspirações que, muitas vezes não correspondidas, criam um gargalo ainda maior - pode ser complicado reter pessoal para diferentes funções.

Na mesma medida em que muitos profissionais não possuem a experiência e as habilidades necessárias para as vagas disponíveis, a falta de reconhecimento e oportunidades de desenvolvimento e um ambiente de trabalho inadequado levam a alta rotatividade, dificultando a formação de equipes experientes.



Muitas vezes são condições de trabalho incompatíveis com a qualidade de vida. Jornadas exaustivas, ambiente tóxico e falta de liderança e gestão eficiente (como muitas vezes acontece em bares e restaurantes) são fatores que desmotivam quem está disponível para o emprego.

"Há dificuldade tanto para contratar quanto para reter profissionais. Além da escassez de candidatos qualificados, conservar os funcionários já treinados também é um desafio. Isso se deve a fatores como baixa atratividade das condições de trabalho, falta de perspectiva de crescimento e concorrência com outros setores que oferecem melhores benefícios ou horários", identifica a presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) em Minas Gerais, Karla Rocha. A falta de investimento em cursos de gastronomia e treinamentos, tanto por parte das empresas quanto dos próprios profissionais, dificulta a qualificação.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), divulgada em março deste ano, a remuneração no segmento de alimentação fora do lar alcançou sua maior média salarial da história, atingindo R$ 2.222. Ainda assim, quem empreende em bares e restaurantes tem enfrentado obstáculos para preencher as vagas disponíveis, de acordo levantamento da Abrasel, do mesmo mês. Os dados apontam que  90% dos empresários no país consideram “difícil” ou “muito difícil” contratar novos funcionários.

Conforme a pesquisa, os principais entraves na hora de encontrar mão de obra são a dificuldade de encontrar profissionais bem qualificados (64%), falta de interessados nas vagas (61%), horários pouco atrativos para os cargos oferecidos (33%), alta demanda pelos profissionais (23%), migração da mão de obra para outras áreas (21%) e expectativas salariais acima da capacidade dos estabelecimentos (20%).

Pela perspectiva do profissional que busca a colocação, os salários desejados não são compatíveis com a oferta em muitos casos. No Brasil, 20% dos empresários relatam que a remuneração almejada está acima das possibilidades de pagamento dos estabelecimentos. Faltam cozinheiros, auxiliares de cozinha, garçons, atendentes e demais funções. Cargos especializados são os mais difíceis de preencher: 88% dos empreendedores caracterizam a dificuldade de contratar sushiman como “alta” ou “muito alta”, seguidos dos cargos de cozinheiro-chefe (81%) e gerente (78%).

Além da escassez de candidatos qualificados, conservar os funcionários já treinados também é um desafio, como explica a presidente da Abrasel em Minas Gerais, Karla Rocha
Além da escassez de candidatos qualificados, conservar os funcionários já treinados também é um desafio, como explica a presidente da Abrasel em Minas Gerais, Karla Rocha Alessandro Carvalho/Divulgação



"Há uma lacuna clara entre a oferta de mão de obra e as necessidades do setor. Embora o salário médio no segmento esteja acima do salário-mínimo, o valor ainda é pouco competitivo. Por isso, precisamos de estratégias capazes de atrair profissionais e oferecer a qualificação necessária para que eles possam atender às expectativas e contribuir de forma eficaz para o crescimento dos negócios", afirma o presidente-executivo da Abrasel nacional, Paulo Solmucci.

Karla Rocha cita outro dado importante: 92% dos empresários contratam pessoas sem experiência na área, em busca do primeiro emprego. "Isso reforça o papel do setor como porta de entrada para o mercado de trabalho".

A pesquisa mostra que os empresários têm adotado diversas estratégias para atrair e reter talentos, complementa Karla. Entre elas: 51% dos empresários oferecem premiação por desempenho; 40% oferecem cursos e treinamentos; 39% oferecem benefícios (como plano de saúde, bolsas de estudo, vouchers); 36% optam por aumentar os salários; 26% flexibilizam os horários de trabalho e 22% disponibilizam serviço de transporte noturno após o expediente.

“O setor gera muitas oportunidades de emprego, mas ainda enfrenta grande dificuldade para preencher essas vagas, especialmente as que exigem qualificação técnica. Isso mostra a urgência de investir em formação profissional que aproxime o trabalhador das reais necessidades do mercado”, ressalta Paulo Solmucci, lembrando que o aumento gradativo da média salarial no setor, além do oferecimento de capacitações e benefícios, reforça o interesse dos empreendedores em investirem em uma mão de obra mais produtiva.  "O futuro do setor não está apenas na criação de novas vagas, mas também na capacidade de atrair e reter profissionais qualificados que atendam às demandas do mercado", diz.

Além da qualificação de mão de obra, outro ponto é a importância da implementação de medidas que retenham os funcionários, considerando que este já é um setor que, naturalmente, tem alta rotatividade. “Para que a produtividade do negócio não sofra grande impacto com a alternância de colaboradores, investir em tecnologias como automação e Inteligência Artificial pode ser uma estratégia para não comprometer a qualidade do serviço. Esses recursos têm contribuído para que os negócios ampliem suas atividades, com um padrão e a agilidade no atendimento, por exemplo”, completa Paulo Solmucci.

'O futuro do setor não está apenas na criação de novas vagas, mas também na capacidade de atrair e reter profissionais qualificados que atendam às demandas do mercado', diz o presidente-executivo da Abrasel nacional, Paulo Solmucci
"O futuro do setor não está apenas na criação de novas vagas, mas também na capacidade de atrair e reter profissionais qualificados que atendam às demandas do mercado", diz o presidente-executivo da Abrasel nacional, Paulo Solmucci Caio Veloso/Divulgação


A pesquisa também perguntou aos empresários quais são as questões trabalhistas que mais os preocupam. A maioria (56%) teme problemas relacionados ao trabalho de profissionais extras e eventuais. Em seguida vêm a escala de trabalhos aos domingos para as mulheres (35%); horas extras (26%); risco de ações por dano moral (19%); pagamento de gorjetas (17%); trabalho terceirizado (16%); insalubridade (14%) e estabilidade para gestantes (11%).

Em formação

O professor do curso de gastronomia do Centro Universitário Uni BH e Le Cordon Bleu, Sinval Espírito Santo, diz que o aluno, a partir do momento em que começa a evoluir em sua formação, a a ter uma noção maior de como funciona o mercado. Enquanto está na universidade, está em um ambiente protegido, conta com a paciência do professor, a didática, tem espaço para aprender e errar - é a oportunidade da experimentação, em cursos que servem como laboratórios. Para Sinval, cabe ao docente apontar o que o aluno deve ir aprendendo e praticando, quais técnicas que precisa dominar, e qual a postura adotar no ambiente de trabalho.

"Precisa entender o que é uma postura individual, em equipe, as questões da hierarquia, o fluxo pelos espaços. Precisa saber como estar em uma cozinha, muitas vezes um ambiente quente, mal ventilado, com muita gente", aponta. Pode soar trivial, mas saber circular nesses espaços é fundamental. "Sinalizar  e indicar se vai transitar com algo quente por trás ou pela frente, fazer movimentos com segurança, avisar ao colega que vai ar  com o corpo sem que seja desrespeitoso", exemplifica. Tudo isso pode ser ensinado nos cursos de gastronomia.

Sinval lembra que, à medida que o aluno adquire conhecimentos e vai se adaptando ao meio, começa a ser indicado pelos próprios professores para trabalhos - muitos docentes são também empreendedores, donos de negócios no setor.

"Indicamos para o mercado quem sabemos que vai atender as necessidades do chef ou do empresário". E, cada vez mais, quem ainda está estudando sabe que, na gastronomia, nem sempre tudo é uma maravilha. Sobre questões salariais, por exemplo, Sinval fala sobre o contraste entre a necessidade de quem contrata de ter um funcionário que seja extremamente dedicado, que trabalha horas a fio, sem a contrapartida - esse é um ajuste a ser feito.

O professor do curso de gastronomia do Centro Universitário Uni BH e Le Cordon Bleu, Sinval Espírito Santo, diz que o papel da universidade é fazer o encontro entre o aluno que está precisando de trabalho e o empresário
O professor do curso de gastronomia do Centro Universitário Uni BH e Le Cordon Bleu, Sinval Espírito Santo, diz que o papel da universidade é fazer o encontro entre o aluno que está precisando de trabalho e o empresário Daniel Chico/Divulgação



"Tem muito aluno formando, muita mão de obra, vaga para gente boa, mas muitas vezes isso não se encontra. Nosso papel é fazer essa ponte, esse encontro entre o aluno que está precisando de trabalho e o empresário. Com o tempo, quem se torna bem sucedido, consegue se adaptar e crescer no trabalho, vira um profissional desejado. Existem muitos exemplos de grupos de profissionais que circulam em restaurantes, confeitarias, cafeterias e buffets, transmitindo confiança a quem contrata, e sempre indicados para novas funções. Têm a oportunidade de segurança no emprego, de fazer carreira", diz.

Desafio

O restaurante Pacato e o bar Pirex foram inaugurados em setembro de 2021 em BH. O chef proprietário dos estabelecimentos, Caio Soter, fala sobre a dificuldade contínua em contratar. "Apesar de sermos referência e recebermos bons currículos, é notável como diminuiu o interesse por trabalhar na área desde o final da pandemia. Tanto no salão quanto na cozinha é um desafio encontrar profissionais qualificados e dispostos a trabalhar".

Ele percebe a inflação no Brasil como um fator que faz com que o trabalhador não consiga mais viver com os salários como eram antes da crise sanitária pré pandemia, o que forçou o setor a reajustar a remuneração. "Não é possível reajustar no mesmo patamar da inflação, e então o trabalhador do setor fica com o orçamento altamente apertado. Muitos buscam trocar de área para ganhar mais", conta Caio, que, para driblar essa situação, tenta oferecer condições melhores de remuneração com possibilidade de crescimento dentro da empresa.

O chef proprietário do restaurante Pacato e o bar Pirex, Caio Soter, coordena uma equipe de 50 funcionários
O chef proprietário do restaurante Pacato e o bar Pirex, Caio Soter, coordena uma equipe de 50 funcionários Victor Schwaner/Divulgação e Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press



Uma mudança veio com a decisão de voltar pessoalmente para a cozinha. "Com pessoas mais experientes na cozinha, a tendência é de que forme-se uma nova geração de profissionais qualificados, por conta do contato diário com chefs mais experientes que se dedicam à formar mão de obra".

Esse movimento recente também aconteceu com o chef executivo  Daniel Duarte e a chef de qualidade Isabela Rochinha. "Com a gente à frente das operações, o turnover já diminuiu drasticamente, o clima de trabalho melhorou, processos foram implementados, controles aprimorados e nossos indicadores estão muito mais saudáveis", constata.

São cerca de 50 funcionários em todas as operações, divididos em cozinha, salão e departamentos de e, trabalhando majoritariamente em escala 5x2. Caio acredita que, dentro da lógica do mercado de A&B, oferece um salário competitivo, mas não esconde que gostaria de pagar o triplo para quem trabalha com ele.

"A grande questão é que o mercado já tem uma margem muito achatada e sofre com um público que julga de forma dura a prestação de serviço e cobra preço baixo. Não há muito espaço pra subir os preços e cobrar o necessário para se ter lucro constante, equilíbrio de fluxo de caixa, pagar todos os impostos, pagar todo mundo como deveria ser. É um mercado que paga mal".

Qualidade de vida

Em Belo Horizonte, o modo de trabalho na Albertina Pães é um exemplo de como fazer bem feito. A padaria no Lourdes representa a virada de chave na vida da arquiteta Renata Rocha Pereira. Ela manteve um escritório de arquitetura durante 20 anos e, aos poucos, começando a fazer pães por atempo, a mudança foi se apresentando. Antes da pandemia, um curso de panificação em São Francisco, na Califórnia, seria a guinada. Logo na volta dos Estados Unidos, a pandemia foi o ensejo para que ela iniciasse a produção caseira de pães. Criou o nome e a identidade visual da padaria e, com o fim do lock down, surgiu a loja física que, depois de quatro anos, já cresceu para um ambiente maior.

Hoje Renata coordena uma equipe de dez funcionários, todos com ela desde o princípio. São quatro padeiros na cozinha, quatro pessoas no atendimento no recém-inaugurado espaço de café, um serviço gerais e um gerente. Ela conta que não tem problemas quanto aos colaboradores - a harmonia vem da cultura profissional que implementou. "Não vim da cozinha, e por isso já comecei com um olhar diferente. Busquei profissionais mais qualificados, mais bem remunerados, e jornadas normais. Nem imaginava a escala normalmente praticada nas cozinhas", conta.

Na equipe da Albertina Pães, a relação é de amizade. Todos são vistos e têm seu espaço
Na equipe da Albertina Pães, a relação é de amizade. Todos são vistos e têm seu espaço Edésio Ferreira/EM/D.A Press



O modelo de negócio parte de um funcionamento em horários mais s. A padaria fica aberta entre quarta-feira e sábado - de quarta a sexta entre 10h às 18h30, e sábado de 9h30 às 14h -, mas todo os funcionários também trabalham na terça-feira, preparando os produtos e a dinâmica para a semana que começa. Na cozinha, o turno é entre 7h e 16h, fora do esquema convencional em padarias, que começam o dia ainda de madrugada. Como são pães de fermentação natural, que precisam de 24 horas de fermentação, os produtos são todos feitos no dia anterior.  

Com isso, a rotatividade não é uma preocupação. Considerando oito horas por dia, cinco dias por semana (a folga é domingo e segunda), salários dignos, sem sobrecarregar a equipe, nasce uma relação de amizade. "É um ambiente estimulante. Todos têm espaço de fala, trazem ideias, participam dos processos. Têm seu lugar e são vistos", conta. E não tem mistério - não se trata de ter um bom salário, mas ser explorado e estar sempre exausto. Pelo contrário, diz Renata. É uma remuneração que permite viver com dignidade e uma carga horária que possibilita a vida além do trabalho.

Dessa maneira, ela tem como parceiros pessoas que se sentem realizadas, importantes, em uma equipe unida, colaborativa, sempre um ajudando o outro. "Criei a cultura do respeito". E, quando questionada sobre como consegue ganhar dinheiro, sua postura enquanto empresária é mais um exemplo.  "Muitos me falam que eu poderia ganhar mais, se abrisse mais. Mas minha expectativa com o negócio vai até um certo ponto. Não espero ser uma grande empresária, com muito dinheiro. Quero ter vida além do trabalho. Meu salário não é enorme, mas é digno, o suficiente para viver. Estou alinhada com esse desejo. O cliente precisa ser educado, entender que a gastronomia não tem que ser 24 horas", continua Renata, reforçando que essa é uma questão de quebrar paradigmas. "Acredito nisso".


'Não espero ser uma grande empresária, com muito dinheiro. Quero ter vida além do trabalho', conta Renata Rocha Pereira, que comanda a Albertina Pães
"Não espero ser uma grande empresária, com muito dinheiro. Quero ter vida além do trabalho", conta Renata Rocha Pereira, que comanda a Albertina Pães Edésio Ferreira/EM/D.A Press

Algumas soluções para as dificuldades que envolvem a mão de obra na gastronomia

Investimento em qualificação

Empresas devem oferecer cursos, treinamentos e programas de desenvolvimento para seus funcionários, visando a formação de profissionais qualificados e a retenção de talentos.

Melhora do ambiente de trabalho

É importante criar um ambiente de trabalho positivo, com boas condições, gestão eficiente e reconhecimento dos profissionais.

Parcerias com escolas e universidades

A parceria com instituições de ensino pode ser uma forma de atrair novos profissionais e garantir a qualidade da mão de obra.

Tecnologia

O uso de tecnologia para automatizar processos, otimizar a gestão e melhorar a experiência do cliente pode reduzir a necessidade de mão de obra e aumentar a produtividade.

Fluxo de trabalho

A implementação de fluxos de trabalho claros e processos bem mapeados otimiza a produção, facilita o treinamento de novos colaboradores e garante que todos entendam suas responsabilidades. Um fluxo de trabalho eficiente organiza os processos diários, assegurando que todos saibam o que fazer, quando e como.

Cultura organizacional

Além dos processos, a cultura organizacional é fundamental para garantir a consistência e o engajamento da equipe. Ela reflete os valores, crenças e práticas que orientam o comportamento de todos dentro da empresa.

No setor de bares e restaurantes, uma cultura organizacional forte melhora a motivação dos colaboradores, a qualidade do serviço e os resultados financeiros. Empresas com uma cultura sólida retêm talentos e garantem que os processos sejam seguidos de forma consistente.


Flexibilidade

A oferta de diferentes modelos de trabalho, como trabalho remoto ou home office, pode ser uma forma de atrair e reter profissionais.

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